Este trecho do livro Deuses da Mente, do autor Igo Araújo dos Santos, é um diálogo entre o personagem principal Frederick Siex III e seu avô, homônimo, em que discutem a Liberdade. As frases em Itálico são diágolos feitos através de telepatia.
- A partir do meu pai, você [Siex I] clonou os outros Agnatus e deu início a sua loucura.
- “Loucura”? Você chama o que eu fiz de loucura? Loucura era o mundo em que estávamos vivendo! Crimes, assassinatos, roubos, tráfico de drogas! Era a visão do caos.
- Caos que você incitou! Não se faça de inocente!
Siex sorriu orgulhoso, como uma criança levada.
- Você descobriu os meus subterfúgios?
- Desprezíveis, eu diria.
- Tudo depende do ponto de vista, Frederick. Em certos momentos da história, é necessário cometer atos desprezíveis, como você tão eloqüentemente definiu, para mudá-la. O mundo não é um mar de rosas, ao contrário do que você e todos os outros sempre fantasiam. Enfim, esse não é o assunto em pauta hoje.
Os ânimos começaram a se exaltar, fugindo do nosso controle.
- Como não?! – gritei me descontrolando, escapando da conexão mental – Essa é só mais uma das suas insanidades!
- Pare de ser utópico! Parece um comuna do século XX! Desejando um mundo perfeito, um mundo sem injustiças, um mundo sem decisões difíceis!
- Não justifique seus atos nas imperfeições da realidade!
- Eu fiz o que tinha que ser feito!
- Para manter o seu poder que ruía, que está ruindo pouco a pouco!
- Para manter a ordem! – meu avo gritou, levantando-se da cadeira de modo bruto.
- A sua ordem sufoca a liberdade das pessoas!
- Liberdade? Você nem sabe o que é isso, Frederick! Nem você nem ninguém, neste ou em qualquer outro mundo sabe o que é liberdade! A liberdade é um sonho de cinema!
- Sabemos sim! É poder pensar livremente, sem você para nos dizer como fazer isso ou para invadir nossos segredos! Liberdade é não ter você para nos controlar seja como for!
- Eu repito, Frederick! Nem você nem ninguém sabe o que é liberdade! O que você quer ninguém pode ter! Todos nós estamos limitados seja pela lei, pela sociedade ou por nós mesmo! Nós somos limitados, somos presos! Qualquer um de nós, até eu sou limitado! O que você chama de liberdade eu chamo de utopia, alienação, crença em algo completamente inexistente! Uma mentira que nos motiva para o fim!
- Do que você está falando! Antes de você, as pessoas podiam pensar como quisessem, podiam se opor, podiam se expressar! Hoje, as suas ordens, seus Agnatus sufocam esse direito!
- O que acha que o mundo era antes de mim, Frederick? O que foi que o líder da Lótus lhe disse? Que antes o mundo era perfeito, um Jardim do Éden e eu surgi como a Serpente e mandei as pessoas calarem a boca? Acorda para a realidade, Frederick! As pessoas já eram alienadas antes de mim, antes de Hitler, antes de Átila! Os humanos são limitados desde os tempos das cavernas! Seus próprios corpos os limita! E se isso não é o bastante, as leis definem o que pode ou o que não pode ser feito! E se isso ainda não é o bastante, o próprio bom senso deles diz quando e como devem agir, se é sensato ou não! Nós nunca fomos plenamente livres, Frederick, e tomar isso como verdade, é no mínimo imprudente!
- Você quer controlá-los!
- Lógico que quero! Essa é a ordem natural do mundo! Um idiota maior lidera os idiotas menores rumo à evolução! Se não fosse por mim, ou pelos nossos antepassados, não seriamos mais do que um bando de Homo erectus sem pêlos! Nós conduzimos o que restou de nós ao máximo que a humanidade já viu, e se não fosse pela Lótus, estaríamos muito mais longe!
- É assim que você se vê: Um pastor guiando as ovelhas em direções de melhores pastos?
- Numa metáfora tosca, sim, é assim que eu me vejo!
- NÃO! Você é um usurpador! Não tem o direito de guiar essas pessoas para onde quer que você queira! Não do modo como vem fazendo! Tirando-lhes o direito de falar o que quiserem! Tirando o direito de dar suas opiniões e fazer com que elas sejam respeitadas!
Meu avô caiu numa gargalhada profunda e alta, seus ombros se mexiam inquietantes enquanto o riso ecoava pelo escritório.
- As pessoas da qual você está falando nunca foram pensantes! Elas não ligam para essa existência superior que você defende! Você é um alienígena entre elas! Tudo o que essas pessoas querem é sobreviver, ter um trabalho para sustentarem seus filhos famintos e seus cachorros pulguentos! Para elas basta: dinheiro e um bom plano de saúde! O resto é bônus! Poucos, muito poucos tem a mesma preocupação que você tem! O nome científico dessas pessoas é Homo laboris.
- Mentira! Existem centenas de aliados à Lótus!
- Jura? Diga-me uma coisa, Frederick, por que você se aliou à Lótus? Quando surgiu essa decisão?
- Assim que me disseram o que você faz!
- Não minta, Frederick, você se aliou a eles porque descobriu que eu mandei caçar você e a Tenente Jackson. Antes de saber das causas da Lótus você já tinha decidido se juntar. E esse é o motivo que move noventa e nove porcento dos rebeldes, aliás a maior motivação da humanidade na minha opinião: vingança!
Como ele sabia? Como ele sabia de coisas que nem eu mesmo tinha noção?
- Esse seu discurso emocionante sobre Liberdade é apenas um motivo nobre para a mesquinharia que reside em você! No fim das contas, você acaba sendo mais hipócrita do que eu.
- Cale a boca!
Eu contemplei um sorriso no meu avô que eu nunca tinha visto. Seus lábios se contorceram numa satisfação diabólica sob o brilho maníaco de seus olhos.
- Onde está a Liberdade de expressão da qual você estava falando? Eu lhe disse, as pessoas são limitadas até pelo seu círculo social. Em circunstancias normais eu evitaria dizer que você é hipócrita para conter desentendimentos. Mas acho que nós dois concordamos que essa não é uma circunstância normal.
- Eu não vou ficar aqui.
- Lógico que não, afinal de contas, você tem uma pobre donzela para salvar, não é mesmo? E eu acho que ela já sabe que tem uma “equipe” de resgate preparada para buscá-la.
- Você sabe da força Binária!
Ele ria satisfeito com o meu espanto, com o seu triunfo.
- Sei.
- Não acredito que você vá me deixar ir assim tão facilmente.
- Por que não? Você mesmo já deve ter percebido que só estamos nós nessa casa e, mesmo tendo poderes telepáticos, os seus superaram os meus, não tenho condições de manter você aqui. Tudo o que me resta é deixar você ir.
Levantei-me da poltrona, lentamente, cauteloso quanto a qualquer movimento que pudesse vir para cima de mim, sempre sob o olhar de divertimento do meu avô.
Cruzei a sala de costas, vigiando-o e ele a mim, meu palmtop no bolso. Passei pela porta e corri para fora da casa.a