sábado, 6 de agosto de 2011

Numa Democracia, Até o Mau Gosto Merece Ser Mostrado



Sim, por mais contra-senso que isso pareça, até o mal gosto merece ser mostrado numa verdadeira democracia (coisa que o Brasil, por estas e outras, ainda parece longe de ser). Se você acha o contrário, por qualquer razão que seja, você está no começo do caminho para a censura. Lembre-se: nenhuma censura jamais foi instaurada por razões ruins ou más intenções. O impulso de vetar a informação sempre tem fundamentos nas mais belas e honrosas intenções...

Assim acontece com "A Serbian Film - Terror Sem Limites", do diretor Srdjan Spasojevic. Não vou discutir o conteúdo do filme, que, pelo que andei lendo, está abaixo do tal mal gosto que havia mencionado no título. Cenas de incesto, necro e pedofilia das mais brutais, tudo com um pano de fundo de crítica política. Ou seja, é o supra sumo da mediocridade pseudo-intelectual. No entanto, isso não é desculpa para censurá-lo, como fez o estado do Rio de Janeiro. "Uma juíza proibiu a sua pré-estréia no sábado, dia 23. Ela concedeu uma liminar impedindo a exibição a pedido do DEM do Rio de Janeiro. O ex-prefeito Cesar Maia, que não viu a fita, considerou que sua exibição seria danosa para os brasileiros e violava o Estatuto da Criança e do Adolescente.", diz Reinaldo Azevedo, em seu blog na Veja.com. Essa é uma síntese do imbrólio.

A pergunta que fica é: alguém no Brasil ao menos sabe o que é Liberdade de Expressão? A resposta é: não só sabem sabem como a destestam...

Vou destrinchar primeiro o caso do "A Serbian Film" e depois parto para questões mais abrangentes.

O Artigo 5º, da Constituição Brasileira de 1988 - sim, aquela mesma, feita depois da Ditadura Militar -, no parágrafo IX, diz: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença". Ponto. 

Há quem diga e argumente que a Liberdade de Expressão não é absoluta e que, em certos casos ela não se aplique. Ela seria conflitante por exemplo com no Artigo 1º, paragráfo III, que diz "A República Federativa do Brasil [..] tem como fundamentos: a dignidade da pessoa humana". Com base nesse parágrafo, argumenta-se que "A Serbian Film" é uma afronta a dignidade humana, por apresentar cenas de sexo com cadáveres, parentes, menores de idade e até bebês e, portanto, o Estado tem o direito - se não, o dever - de proibir sua exibição.

Como eu disse, a censura nunca vem com seu rosto malévolo, mas, sim, com uma máscara de defensora da moral e dos bons costumes.

Me pergunto, se a exibição do filme - por mais repugnante que seja - não seria mais útil à promoção "dignidade humana" do que sua censura. Até onde sei, o filme é um protesto político, portanto, uma denúncia de alguma situação deplorável que chegou ao conhecimento do diretor! Segundo - e aqui, admito a possibilidade de estar errado -, o Estado não deveria se ocupar de riscos reais à "dignidade humana"? Que riscos reais à dignidade humana um filme pode oferecer - além do óbvio atentado ao bom-gosto.

E se a censura ao filme em questão é para proteger a "dignidade humana", o que dizer de filmes como a franquia "Jogos Mortais" ou "O Albergue", com cenas de tortura e morte de pessoas apenas para divertimento? Não cheguei a ver toda a série Jogos Mortais, mas lembro que uma das "jogadoras", para escapar das armadilhas, tinha que abrir o corpo namorado para encontrar a chave que a libertaria. Em "O Albergue 2", há uma cena particularmente perturbadora, em que um jovem (lembro-me bem, porque era o ator que fez Victor Krum, em Harry Potter e o Cálice de Fogo) está amarrado em uma mesa, se debatendo, enquanto um senhor alegremente fatia pedaços da sua coxa e as come cruas... Claro que sexo com bebês é mais grave e mais perverso, mas todas essas situações não estão no hall dos atentados à "dignidade humana"? E porque nada foi feito para censurar esses e outros filmes de terror/suspense? Resposta: "A Serbian Film" não veio de nenhum super estúdio hollywoodiano e diz ter um viés político. A censura só deixa exposta a hipocrisia dos governos e governantes que permitem quando ganham e querem proibir quando perdem.

Mesmo que a Liberdade de Expressão não seja um direito absoluto, eu digo (e não só eu) que ela deveria ser! Qualquer um deveria ter o direito de expressar suas idéias e pensamentos livremente, sem que o Estado o cale antes de saber o que a dizer. Os simpatizantes da censura dizem que a Liberdade de Expresão absluta abriria brechas para a impunidade. Isso é uma afirmação falsa e perigosa! Nós deveríamos ser livres para expressármos nossas idéias, mas isso não nos isenta de responder pelas consequências do que foi dito. Consequências, estas, muitas vezes definidades pelas leis. No caso de um péssimo filme como "A Serbian Film", a consquência é ser criticado e boicotado por expectadores pensantes e de seus criadores é serem levados ao ostracismo pela opinião do público e pelo meio cinematográfico. 

Se este fosse um caso isolado no Brasil, as implicações seriam, obviamente, menores. No entanto, a censura ainda é um vício no país que impede a exibição não apenas de filmes de péssimo gosto, mas também notícias de real relevância ao interesse público; políticos (em geral) não tem qualquer respeito pela profissão jornalística e insistem em desmerecê-la quando, no exercício de sua função, denunciam os descalabros corruptos do poder. 

O flerte com a censura, de qualquer espécie, é a marca de um Estado que não tem qualquer interesse com seu povo. Seus interesses são apenas para com a manutenção do poder e a alienação. Quanto tempo levará para que a proibição de um filme se torne a proibição de certas notícias pertinenetes ao público e impertinentes aos jogos de poder?

A prova da verdadeira democracia é a relevância até do que nos é contrário. Aquilo que tem aversão à contrariedade chama-se ditadura.

Deixem que até o mau gosto seja mostrado!


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