
Não passara o dia bem. Nada bem. De fora, quem olhasse, diria que ele estava bem. E de fato estava. Gastara boas horas em companhia de quem amava, e foi pra casa tarde da noite. Nem tão tarde, afinal, já estivera fora por um bom tempo e tinha obrigações no dia seguinte.
Mas agora, ali, deitado no escuro quarto, sentido a ansiedade corroer-lhe o estômago e a sanidade percebeu que apenas se engara! Se engara o tempo todo. E nada podia irritar-lhe mais do que se enganar. Pensou que podia fazer algo que não era capaz de fazer, nem por um dia e sustentara duas semanas seguidas de um sacrifício que desde muito novo, sabia que não estava disposto a fazer. O sacrifício de suas horas, de seu tempo, de seu sono, de sua criatividade, de sua vida. Sua vida. Quem olhasse, acharia que para ele sua vida não valia nada - e havia noites que ele pensava assim também. No entanto, sabia, tinha plena consciência, absoluta certeza de que sua vida valia muito mais do que qualquer coisa que já tivesse posto a mão. Ele era único e não se misturaria por qualquer coisa. Não trairia sua própria causa por trinta moedas de prata.
E, ali mesmo, na escuridão do quarto, percebeu que não havia outra saída, se não, vender sua alma, vender seu caráter. Não havia outra solução, além de se sacrificar. Se todos faziam, porque não poderia fazer também?... Não! Não ele! Justo ele, que tinha plena convicção de que era diferente! Trabalhar duro a vida inteira para ser diferente e não seria igual agora! Se imitasse aquele que vendeu seu mestre por meras trinta moedas de prata, acabaria justamente como ele: enforcado num galho de árvore, envolvido pela corda da própria piedade. E não precisava da piedade de ninguém, nem de si mesmo.
Mas não havia jeito!!! Não havia escapatória!!! Vivia no mundo de humanos covardes e pequenos. Justo ele que sempre fora tão grande, sempre ansiara voar. Sentia-se como um avestruz, ou pior, um frango: tinha asas, mas mal saia do chão. E se fosse assim pra sempre? E se sempre estivesse ali, à beira do vôo, mas nunca chegaria a meros metros do chão. Logo ele que queria ver o céu, tocar as estrelas e ver as montanhas como pequenos montes dentilhados, de tão alto que estaria? E se fosse um animal terrestre fadado a tortura de ter asas inúteis? Isso era ainda pior!
Não queria ser escravo de ninguém. Por que era assim que podia se definir nos últimos tempos. Talvez, até, nos últimos anos. Um escravo. Sem sonhos, sem vontades, sem nada! Um ser vazio e desconhecido. Mero fantoche. Mas não seria por muito mais tempo.
"É assim que as coisas são! Você tem que fazer um dia, mais cedo ou mais tarde". Não! Não ele! Ele era um mestre em achar soluções que ninguém mais via - ou gostava de se achar assim. Aprendeu que sempre há mais de um jeito de se solucionar um problema. E o problema era: não seria um escravo. Não desperdiçaria sua vida num labirinto de ratos!
E achou sua solução brilhante. Na verdade, não achou. Apenas tirou das prateleiras da sua mente, que estava sempre ali, sempre pertinho e à mão, no quarto das soluções bruscas, que eram suas preferidas. Acreditava piamente em cortar o mal pela raiz. Lá estava sua idéia, brilhante e tenebrosa. Sabia que ninguém o entenderia, e tinha se afastado tanto, que isso já não o satisfazia. Não precisava mais que os outros o entendessem. E mesmo com tanta convicção de que não necessitava da atenção dos outros, experimentara a dúvida. A maldita dúvida.
A dúvida na cabeça, vagou pela casa, com passos de fantasma, antecipando seus dias no além - como aliás, sempre fizera. Sozinho, na semi-escuridão, mergulhado em seu mundo, andando em silêncio. Já era manhã quando entrara na cozinha e puxara a gaveta, tirando de lá, a reluzente lâmina que silucionaria todos os seus problemas.
Não, não estava deprimido. Sentimentos não tinham nada a ver com aquela decisão. Pensara friamente sobre aquilo e chegara a melhor escolha; talvez a não mais ortodoxa, talvez a não mais compreensível, mas definitivamente era racional. Dois mais dois igual à quatro. Não conseguiria viver como um escravo, preso ao chicote do capataz e às ordens do coronel. Tinha honra e carater demais pra isso, e jamais mudaria para aceitar tamanho desrespeito à sua natureza nobre. A morte selaria seu destino antes que virasse uma piada de baixo calão.
Entao, a lâmina tocara sua pele. O frio metálico e os dentes da faca espentando a superfície. Aquela era sua dúvida. Não temia a morte, não temia o inferno, não temia a dor que causaria aos outros, desistindo daquela maneira. Temia unica e exclusivamente a dor da serra abrindo-lhe a carne. Por dias, imaginar aquela sensação foi o que o impediu de se libertar e naquela manhã aconteceu de novo. Sentiu medo de sentir dor. Seu pânico era tanto que sua coragem caiu por terra e ele foi chorar. Não sabia se era por que resistiu ou se porque desistiu. Não sabia se chorou por não ter a menor idéia do que faria além de morrer. Não sabia chorou porque demonstrara mais uma vez que fora o mediocre que não queria ser. Desistiu, como sempre...
Não acho que desistir de viver seja a melhor das soluções, apenas acredito que alguem que pretende de fator partir dessa pra melhor, não costuma pensar... e se pensa, pensa já fazendo...
ResponderExcluirEscolher por continuar a viver não é um ato de fracasso, é tão nobre quanto escolher o outro caminho... talvez mais nobre que o outro...
Mas o que talvez de mais medo, não é a dor do ato, mas a dor da incerteza do depois...isso sim é o pior...
bjuus
Muito interessante ! Gostei ! Lembra daquela conversa que tivemos sobre "identificar o autor na história"? Pois é...depois comento sobre isso ! Abraços !
ResponderExcluirhumm... caramba...
ResponderExcluirmtas vezes pensamos que essa é a solução, mas acho que fazemos bem de desistir, como o carinha desse conto... hehe
abraaaço!
Adoro ler voce, me preencho e me esvazio ao mesmo tempo.
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